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domingo, 24 de abril de 2011

"Não ficará pedra sobre pedra!"



“Alguns dos seus discípulos estavam comentando como o templo era adornado com lindas pedras e dádivas dedicadas a Deus. Mas Jesus disse: Disso que vocês estão vendo, dias virão em que não ficará pedra sobre pedra; serão todas derrubadas". Lc. 21:5-6.

É comum os homens se impressionarem com a “opulência” da religião. Não foi diferente com os discípulos de Jesus. Eles conviviam todos os dias com o “Templo” que se movia, pois o sagrado havia tomado forma humana e se revestido de sangue e suor, o verbo havia encarnado, deixado de ser palavra para constituir-se ação, transmutara-se do metafísico ao físico, do imaterial à matéria, do transcendente para o imanente. Não obstante tudo isso, eles ainda se extasiavam com o humano, o aparente, o transitório.

Também pudera! Ali estava o Templo! Suas pedras chamavam a atenção pela grandiosidade! Contudo e, intrigantemente, mesmo possuindo milhares delas engenhosamente arrumadas, faltava uma única para poder dar-lhe significado e propósito: a Pedra Angular. Na verdade, ali não estava apenas uma imponente construção, mas o símbolo máximo de um sistema religioso cuidadosamente construído e que levara gerações para calcificar ritos e mitos do sagrado de Israel. Um coração quebrantado, todavia, era capaz de discernir que aquele lugar estava vazio, pois revestia-se de liturgias ocas, dessignificadas, constituía-se apenas obra de engenharia, mas não possuía qualquer possibilidade de produzir vida.

Diferentemente de seus discípulos, Jesus não se impressionou com o Templo. Ele sabia que tudo o que ali era feito não passava de “sombras”, projeções vagas do que, de fato, possuía valor para Deus. Se usássemos Platão, poderíamos dizer que o que ali se fazia era apena a “reprodução de imagens”, hologramas do “mundo das idéias”, imitações do verdadeiro sagrado, o qual estava “no alto” e, por sua vez, era constituído de outra matriz cognitiva, com valores e princípios diferentes.

Nós, não raramente, achamos que as formas podem nos levar a experimentar os conteúdos. Equívoco! Eis o Templo, com seus artefatos de prata, de bronze, altar de incenso, local para sacrifícios, propiciações, turnos de oração, levitas entoando canções, gazofilácio para os dízimos, cultos diários, mas tudo não passava de moldura, era arquétipo de uma espiritualidade almejada, mas jamais experienciada. Aquelas práticas estavam enraizadas na tradição, mas suas raízes eram incapazes de chegar ao coração, pois a mente estava cauterizada, os sentido embotados, as ações mecanizadas, tudo havia se tornado vã repetição, sacrifício de tolos, devoção empírica, religião de ocasião.

Naquela manhã, Jesus anteviu a destruição do Templo e a profetizou. Anos mais tarde, em 70 d.C, o general Tito entrou em Jerusalém e dele não restou pedra sobre pedra. Mas a verdadeira destruição já havia se processado bem antes, pois apesar das pedras manterem a “casa” de pé, por dentro dela não se podia encontrar o Espírito o qual, por meio da fé, mediante a graça, é o único capaz de produzir arrependimento e nos levar a salvação.

“Destruir para construir-se”. A frase não é minha, mas de Nietzsche. Está em “Crepúsculo dos Ídolos”, um de seus últimos escritos. Com uma “fúria” insuperável, ele ensina como se “filosofar com o martelo” e parte para a destruição de tudo o que tenha se constituído, de alguma forma, iconoclasta. Eis aí o grande problema da religião: a construção em série de ídololos!

“Quem perder a sua vida, por amor de mim, achá-la-á”. Sem morte não pode haver vida! Sem desconstrução na existe ressignificação! Jesus morreu por volta do ano 30 e o Templo de Jerusalém foi arrasado 40 anos mais tarde. Enquanto um santuário, pela destruição, fechou as suas portas, o outro, pela mesma via, abriu-as por toda a eternidade. A mensagem do Nazareno não pôde ser destruída, nem mesmo contida, espalhou-se por todo o mundo, de casa em casa, nas esquinas das ruas, nos becos, nas estradas da Palestina, em cada cidade ou vilarejo. As portas do Reino dos céus foram escancaradas, pois Deus não estava confinado ao Templo, muito pelo contrário, havia resolvido andar com os homens, com aqueles que desejassem adorá-lo em Espírito e em Verdade, e Seu convite era irrecusável: "vinde a Mim...".

Creio firmemente que o cristianismo, na sua concepção atual, tornou-se um ídolo, precisa morrer, destruir-se para construir-se. Sim, precisa deixar as formas caducas e dogmáticas para que possa se encontrar novamente com os conteúdos da mensagem de Jesus de Nazaré. Precisa diluir-se para que a verdadeira religião possa, mais uma vez, surgir, aquela da qual fala Isaías, que solta às ligaduras da impiedade, desfaz as ataduras do jugo e deixa livre os oprimidos. E quanto a ti, eu te digo, o que tens de fazer, faze-o depressa...
                                    
 Texto de Carlos Moreira
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quarta-feira, 6 de abril de 2011

A fila anda !


Essa semana, hora do rango na empresa em que trabalho, me dirigi pra fila do refeitório percebendo algo diferente dos outros dias de costume: A fila estava enorme e parecia não andar. É que o cozinheiro chefe havia calculado mal as porções para esse dia e justo quando cheguei na fila, providenciava-se uma nova quantidade de porções para as pessoas que ainda não haviam almoçado, nas quais eu me incluía, faminto.

Depois de meia hora sem sair do canto, eu já estava “viajando”, não sei se de fome ou era meus freqüentes devaneios, rsrs... Minha cabeça, definitivamente, não se encontrava mais naquele lugar. Ouvia ao fundo um “zumbido” de gente que conversava, mas eles não podiam me tirar do meu “transe”. Foi aí que senti uma “cutucadela” nas costas. Virei-me e vi um colega dizendo: “vamos João, preste atenção! A fila anda”. De fato, a fila andara e eu não havia me apercebido.

Mas não foi só a fila do almoço que andou... Em quase 14 anos de caminhada, percebo claramente que uma outra “fila" também andou, aquela que me conduz para dentro de mim mesmo. Hoje, constato com alegria que, enquanto caminhava, desconstruí muita coisa que foi “erguida” erroneamente. A verdade é que pouco sobrou... Às vezes releio textos ou mensagens de alguns anos e não os reconheço. “Minha teologia” mudou significativamente nos últimos anos. Dores, perdas, verdades e alguns fracassos me tornaram mais humilde, mais quebrantando, talvez, mais simples.

Lembrei de uma frase que diz: “o simples é o contrário do fácil”. É muito comum confundirmos simplicidade com simplismo. Ser simples é ser singular; ser simplório é ser medíocre. Tenho pavor da banalidade, da unanimidade. Meu grande medo na vida sempre foi me tornar alguém que não fosse eu mesmo, não chegar nunca a ser eu mesmo, não me encontrar comigo.

É por isso que Jesus me fascina! Ele sabia quem era, conhecia o significado de sua existência, compreendia as implicações de sua vocação, seu propósito, discernia o que tinha de fazer, por onde devia andar, com quem precisava se ajuntar. O estilo de Jesus era singular, inconfundível.

Diferentemente de outros mestres, como Platão, que fundou uma academia, ou Aristóteles, que fundou um liceu, Jesus não fundou coisa alguma. Aliás, foi peça fundamental para afundar tradições, dogmas, ritos e mitos do “sagrado” de Israel.

Jesus era desalojado, era como o Pai, “claustrofóbico”, não podia ser “contido”, “aprisionado”. Ia às sinagogas, mas nunca quis ser membro delas, rejeitou a tentação de ser sacerdote, passou ao largo da possibilidade de tornar-se “refém” do Templo, deixou de lado a politicagem do Sinédrio e fez caso das seitas judaicas. Para Jesus, aquilo tudo tinha cheiro de morte, era a religião das aparências, da performance, do embuste, o estelionato do ser.

Por isso a escola de Jesus era na rua, nas esquinas, nos becos das cidades, nas casas, nos ajuntamentos a beira mar, ao pé das montanha ou nas colinas. Seus alunos não eram filósofos letrados, nem rabinos eruditos, muito pelo contrário, entre seus discípulos não havia pessoas com “pedigree”, apenas gente que queria aprender a ser gente.

Se não, observe! Veja se os encontros mais significativos de Jesus não foram com a ralé da sociedade: a prostituta que ia ser apedrejada, os 10 leprosos, Zaqueu o publicano, a mulher do fluxo de sangue, o cego de Jericó, o aleijado do tanque de Betesda, a mulher Cananéia, a viúva de Naim, o endemoninhado gadareno, e outros tantos anônimos, excluídos, oprimidos, perseguidos.

Lembro-me da parábola das bodas... Os convidados eram pessoas “distintas”, “nobres”, gente de “importância”, de “destaque”. Mas todos tinham seus afazeres e fizeram pouco caso do convite. Aí o Rei mandou chamar a gentalha, os estorvos, os miseráveis e os bêbados. Se fosse hoje estariam na festa viciados em crak, transexuais, lésbicas, gays, agiotas, traficantes, aidéticos, deprimidos, flanelinhas, e outros “diferentes tipos”. Fico pensando se eu teria a dignidade necessária para me sentar à mesa com essa gente. Talvez não...

Fato mesmo é que Jesus ora estava aqui, ora ali, outra ora sabe-se lá onde. Até seus discípulos, por vezes, o perdiam de vista. Ele era ser errante, não tinha onde reclinar a cabeça, não criava “raiz”, nem amarras, sua casa era o mundo! Quando você pensava que Ele estava vindo, já tinha ido. Para Jesus a fila sempre estava andando, a vida sempre estava fluindo. Mas, desgraçadamente, aquela geração não soube reconhecer aquela “visitação”.

Olho as pessoas nos nossos dias... Elas estão sempre insatisfeitas, reclamando, querem mais e depois mais, buscam a conquista, o concreto, a segurança, a estabilidade. Enquanto perdem tempo com suas questõesinhas, “a fila anda”, o sonho passa, a vida segue, o tempo voa. É gente insegura, gente ansiosa, gente ingrata, gente irresolvida, gente intemperante, gente que deixou de ser gente, gente que se dessignificou como gente, gente que desaprendeu a ser gente, tornou-se substrato de gente, gente partida, dividida, gente que já não é mais gente.

Para quem chegou neste estágio, só tenho uma coisa a dizer: “a fila já andou”. Enquanto você se emaranhava com tantas questões fúteis, com tantos projetos inúteis, com tanta megalomania, “a fila estava andando...”. Havia nas esquinas da vida gente precisando de carinho, de afago, de uma mão estendida, de uma palavra de conforto, de uma ação de misericórdia, de uma atitude de solidariedade, de uma decisão corajosa, de uma posição assumida, de uma consciência renovada, de uma alma quebrantada, de um coração expandido. E você, onde estava? Onde eu estava?! Ah, nós estávamos nos templos, nas reuniões, nos encontros religiosos, nas vigílias, nos seminários, estávamos “fazendo a obra”! Mas que obra?! A obra de quem?!

Hoje, após aquele almoço, eu quase adormeci no meu intervalo ... Agora estou com medo de estar adormecido quanto à existência que me cerca, aos dramas que me rodeiam, as calamidades que acontecem a minha porta, na minha cara, na esquina da minha rua, na frente do meu trabalho, na ponte, na praça, pois nestes lugares é onde estão os bêbados, os mendigos, os gays, os travestis, os maconheiros, essa gente que eu tenho desprezo de olhar, aversão de ouvir, nojo de tocar, medo de sentir.

Entretanto, o grande paradigma em tudo isto é que são justamente estes que Jesus quer que eu convide para a “festa”, pois são eles os mais receptivos a Graça e ao Reino. Agora, se eu não me “tocar” quanto a isto, corro o sério risco de, em algum momento, ouvir dEle: “desculpe filho; "a fila já andou"; tive de usar outro em seu lugar, pois você estava muito ocupado com a sua obra”. Pense nisso...
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